Comitê Popular dos Atingidos pela Copa 2014

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O que aconteceu com Estrela?

Luis Estrela

Luis Estrela

Dia 26 de junho foi um dia enigmático em BH, último jogo da Copa Das Confederações e a cidade de pé em uma grande manifestação. O desfecho foi uma batalha que se espalhou do mineirão até as ruas do centro da capital. Verdadeiro cenário de guerra onde a PM perdeu totalmente o controle de suas ações e o caos predominou.

Vários relatos sobre grupos que se dispersaram pela cidade em arrastões surgiram no dia seguinte, entre estes, uma notícia triste: um morador de rua foi espancado até a morte*. Pessoas que participam de grupos que acompanham os moradores de rua ficaram estarrecidos ao saber quem foi a vítima: Luis Estrela, um jovem que teimava em ser artista, que fazia da rua o seu palco, dos curiosos platéia, de roupas usadas figurino de gala. Bailarino de sonhos, cheio de caras e bocas, herói e marginal, que podia perder tudo, menos o senso de humor ácido e a coragem.

Assim como outros dois mil moradores de rua sua morte segue sem nenhuma pista. Ninguém sabe, ninguém viu quem agrediu Luis Estrela. Alguns relatos tão notícias de um grupo de espancamento que estava batendo nos moradores de rua indiscriminadamente. Dizem que Luis apanhou até morrer, outros dizem que durante o espancamento ele teve uma crise de convulsão e em todos os relatos uma pista em comum: o medo. Os que viram e sabem quem comandava este grupo tem medo de falar e sabe muito bem porque. As ruas de BH não são seguras e os boatos de grupos de espancamento e intimidação parecem mais reais.

As vésperas da Copa das Confederações, nos meses de maio e junho, a fiscalização municipal intensificou suas ações na tentativa de recolher os pertences dos moradores de rua – cobertores, papelão, mochilas com objetos pessoais, utensílios de cozinha, entre outros – para inviabilizar a permanência nos lugares públicos. Mesmo com a recomendação do Ministério Público que proíbe tal prática conseguimos registrar um Boletim de Ocorrência flagrando fiscais em atuação no dia 28 de junho.

Relatos das ruas nos informam que em regiões nobres da cidade um carro branco circula nas madrugadas e seus ocupantes agridem os moradores que dormem na região. Entre as ações de fato, praticadas pelo poder público e as ações isoladas aqui comentadas, nos preocupamos com o momento em que elas se unem, a realização de um mega-evento, no caso a Copa Fifa 2014. As exigências da Fifa, mais o desejo do poder público de apresentar uma cidade limpa e organizada pode render a perseguição e morte de vários outros moradores de rua, numa onda crescente que já estamos vivenciando este ano.

Luis Estrela se foi como um cometa, não voltará e deixou por aqui marcas incríveis de humanidade. Definitivamente não podemos aceitar que um crime como este entre apenas para as estatísticas de “crimes sem solução” e seja acobertado com o movimento para os jogos da Copa. Não podemos deixar que a impunidade seja a cortina que esconde pessoas organizadas para limpar a cidade dos moradores em situação de rua e que aproveitam o momento para aterrorizar a todos. Por tudo isso não podemos nos calar e perguntamos: O que aconteceu com Estrela?

*Depois que fomos alertados pelo comentário do Henrique procuramos outras fontes de informação. Realmente Estrela não morreu de espancamento, seu falecimento se deu depois de uma crise de convulsão. Amigos que estavam com ele nos relataram que chamaram o SAMU mas este não chegou a tempo. Reconhecemos a nossa falha e afirmamos que não tivemos a intenção de criar sensacionalismo com o fato, o que ocorreu foi que os relatos da rua acabaram por nos enganar e não conseguimos antes avaliar a veracidade dos fatos. Pedimos desculpa a todos e seguimos na luta.

A Copa e a Cidade

Os Jogos da Copa do Mundo e as Olimpíadas no Brasil celebram a propalada fase de prosperidade econômica alcançada durante os últimos anos no país. Contudo, para além do clima de tudo é festa, é preciso ver que a realização desses megaeventos aprofundam e aceleram o modelo excludente e concentrador que encarna a potência econômica do Brasil que vai dar certo.

Os governos, nas três esferas – federal, estadual e municipal – têm elaborado documentos oficiais e peças publicitárias a fim de imprimir “otimismo” quanto ao legado que eventualmente estes megaeventos podem deixar para a sociedade. No entanto, as ações já postas em prática sinalizam um legado, na verdade, perverso: o aprofundamento da segregação social, acelerando a expulsão das populações pobres da cidade, através de remoções forçadas com indenizações vexatórias, e aumentando a repressão sobre as populações já tão exploradas e discriminadas em termos sociais, sexuais e étnicos.

Nesse sentido, é de se notar que o “otimismo” destes agentes com a realização da Copa se identifica apenas com a oportunidade de investimentos, seguindo a lógica de mercantilização do espaço urbano. Somente para o estádio do Mineirão e para o aeroporto de Confins serão destinados 1 bilhão de reais.

É claro que a destinação de enormes cifras de recursos públicos e a contração de empréstimos pelos governos gera aumento do custo de vida, prejudica as políticas sociais e a remuneração do funcionalismo público, que já vive forte arrocho. Por outro lado, enquanto o governo Federal anuncia cortes de cerca de 70 bilhões no seu orçamento para frear o consumo, o Diário Oficial da União publica uma lei que determina, por exigência da FIFA, diversas isenções de taxas e impostos federais a esta entidade. 1

É dessa maneira que a realização das obras para os Jogos vai na contramão de uma necessária política de Reforma Urbana: estrutural, efetiva e popular. Em verdade, os projetos da Copa alimentam o projeto da “cidade mercadoria”, gerida como uma empresa sob o discurso do “choque de gestão”, “metas e resultados”, a serviço de determinados setores econômicos, como a construção civil, campeã em financiamento de campanhas eleitorais. 2

Sendo assim, pode-se dizer que uma minoria privilegiada se apropria dos benefícios enquanto toda a população suporta os altos custos de realização dos jogos. Por exemplo, para os Jogos Pan-Americanos de 2007 (Rio), foram previstos gastos públicos da ordem de 400 milhões de reais, mas foram revertidos 3,5 bilhões (quase nove vezes mais!!!), que ainda hoje pesa como custo para a população, que é quem paga os impostos para arcar com estas dívidas. No caso dos Jogos Olímpicos de Montreal (Canadá, 1976), a dívida resultante demorou 30 anos para ser quitada. Assim, estamos certos de que as  atuais previsões orçamentárias serão também ultrapassadas. Inclusive, o Tribunal de Contas da União e o Ministério Público já encontraram nos processos de licitação diversas ilegalidades. 3

Diante disso, percebemos o verdadeiro legado que os mega-eventos podem deixar ao povo brasileiro. Para esconder esse lado perverso da Copa, o governo explora a forte ligação emocional do brasileiro com o futebol, passando tudo quanto é medida e projeto num clima de “oba-oba”, tentando esconder sua verdadeira cara: o estado de exceção, pelo qual processos legais são descartados e os direitos civis anulados. Isso porque a FIFA impõe, e os governos obedecem servilmente, inúmeras exigências que desrespeitam os princípios básicos da soberania nacional e os direitos de cidadania da Constituição da República. Assim como existiram os “tribunais de exceção” durante a realização da Copa da África do Sul, onde se pôde prender sumariamente qualquer pessoa, sem julgamento, tudo indica que no Brasil também haverá medidas violadoras dos direitos fundamentais dos cidadãos. No estado do Paraná, por exemplo, já se criou até mesmo uma “secretaria do juizado especial” para  “atender imediatamente” contravenções num raio de5 kmdo estádio do Clube Atlético Paranaense.

A ação repressiva do Estado também ganha novos contornos. Em Belo Horizontejá se percebe várias violações dos direitos fundamentais: a abordagem violenta contra os moradores em situação de rua, prisão massiva de flanelinhas, opressão hipócrita contra as prostitutas, enquadramento de pichadores e grafiteiros como “formação de quadrilha”, proibição das feiras de rua (ex.: Comboio do Trabalhador), manifestações culturais, etc. Práticas de “higienização” que colocam em evidência o profundo preconceito e a ação discriminatória dos governantes.

A propósito, o Quilombo Mangueiras, situado na Mata dos Werneck, será seriamente violado pelo megaprojeto denominado Vila da Copa, que será construído neste que é o último grande remanescente verde de Belo Horizonte. Trata-se do maior empreendimento imobiliário em curso no país, com a construção de cerca de 70 mil unidades habitacionais que, após o uso para a Copa, serão vendidas a particulares, potencializando a onda especulativa do vetor norte da RMBH. De repente, sem qualquer consulta à população, a cidade recebeu a notícia de que será criada essa nova regional sobre uma grande área de preservação ambiental, conforme projeto elaborado por consultoria privada contratada pela Prefeitura.

No campo dos transportes, a preparação para a Copa do Mundo tem servido para justificar gastos públicos destinados à melhoria da chamada mobilidade urbana nas cidades-sede do evento. Entretanto, as obras da Copa, com o alargamento de vias, construção de trincheiras, alças e viadutos, apenas reproduzem o modelo veicular privado, individual e motorizado, quando deveriam priorizar o transporte público acessível, coletivo e de qualidade. Desta maneira, a subserviência ao poder econômico da indústria automobilística determina a continuidade de um padrão insustentável de mobilidade para o país.

No caso de Belo Horizonte, a ampliação do metrô, planejado e não concluído desde a década de 70, foi mais uma vez adiada diante do poder das empresas de ônibus que conseguiram direcionar os recursos da mobilidade para os chamados BRT’s (Bus Rapid Transit), que também servem para justificar a ampliação das vias para que mais e mais carros possam trafegar. Sem dúvida alguma, a Copa do Mundo poderia ser uma boa oportunidade para se buscar alternativas inteligentes e não poluentes para o trânsito, como as ciclovias, por exemplo. Mas o que predomina é o totalitarismo dos carros sobre as pessoas que, quando moram em comunidades pobres, ainda são removidas para dar passagem a novas malhas viárias.

Realmente, esta é a face mais odiosa da realização dos preparativos para os Jogos: tudo justifica as remoções dos moradores que estão no caminho das obras, sem diálogo e sem se buscar soluções alternativas, numa relação extremamente indignante e autoritária entre o poder público e os moradores atingidos. Somam-se a isso os modelos de reassentamento – quando existem – e as formas de indenização que ferem a dignidade do ser humano e anulam qualquer cidadania. Exemplo desse processo está em andamentoem Belo Horizonte: a comunidade “Recanto da UFMG”, com cerca de 60 famílias e localizada a menos de500 metrosdo Mineirão, já está sendo removida para a construção de um viaduto para atender à Copa.

Com a aproximação dos Jogos, toda esta situação tende a aprofundar-se, razão pela qual é preciso construir espaços de organização dos(as) que vivem e produzem a cidade. O objetivo maior deve ser garantir transformações urbanas e culturais em favor de toda a população e exigir a transparência e a participação popular direta nas decisões que afetarão o futuro da cidade.

1 “A Fifa ficará desobrigada de recolher as seguintes taxas e impostos: Importação; sobre Produtos Industrializados (IPI); a Contribuição para o Financiamento da Seguridade

Social (Cofins) sobre bens e serviços importados; e a Contribuição para os Programas de Integração Social e Formação do Patrimônio do servidor Público (PIS-Pasep) sobre a

importação, Imposto de Renda, IOF (Imposto sobre Operações Financeiras) e CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido).” Ver: GloboEsporte.com, http://globoesporte. globo.com/futebol/copa-do-mundo/noticia/2010/12/fifarecebe-isencao-de-impostos-federais-para-copa-do-mundode-2014.html, acesso dia 8 de fevereiro de 2011.Em Belo Horizonte, sob o argumento de “promover oportunidades

para a população”, além viabilizar dinheiro e benefícios à iniciativa privada com projetos e obras, a PBH encaminhou e a Câmara Municipal aprovou já em2009 aisenção do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN), o principal tributo municipal, para as atividades da FIFA em BH, e a contração empréstimo de R$ 1,6 bilhão junto à Caixa Econômica Federal para obras que vão “estruturar a cidade para sediar jogos da Copa2014”.

2 O professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Carlos Vainer, analisa como as cidades brasileiras têm seguido o modelo de cidade-empresa, organizada para atrair investimentos. Ele mostra ainda que a realização dos megaeventos facilita que se transformem as cidades em territórios de exceção. Disponível em: http://www.epsjv.fiocruz.br/index.php?Are a=Entrevista&Num=21&Destaques=1